6 TEXTÕES DE ESCRITORES CONSAGRADOS PARA GANHAR OS ALUNOS EM SALA DE AULA
Leituras curiosas e instigantes para aguçar a senso crítico dos seus alunos.
O rodízio de leituras é sempre uma atividade muito bem aceita pelos estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental. Os textos a seguir sugerem um trabalho grandioso, de leitura, compreensão, discussão e posicionamento que favorece o universo leitor do aluno.
O Imbecil
Juvenil – Olavo de Carvalho
Jornal
da Tarde, São Paulo, 3 abr. 1998
Já
acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual sempre fui imune: aquela que
celebra a juventude como uma época de rebeldia, de independência, de amor à
liberdade. Não dei crédito a essa patacoada nem mesmo quando, jovem eu próprio,
ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde cedo me impressionaram muito fundo,
na conduta de meus companheiros de geração, o espírito de rebanho, o temor do
isolamento, a subserviência à voz corrente, a ânsia de sentir-se iguais e
aceitos pela maioria cínica e autoritária, a disposição de tudo ceder, de tudo
prostituir em troca de uma vaguinha de neófito no grupo dos sujeitos bacanas.
O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores,
mas é porque sabe que no fundo estão do seu lado e jamais revidarão suas
agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo de
cartas marcadas no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para
ajudá-lo a vencer.
Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não
têm para com ele as complacências do paternalismo. Longe de protegê-lo, essa
massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade que lhe
mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir. É dos
companheiros de geração que ele obtém a primeira experiência de um confronto
com o poder, sem a mediação daquela diferença de idade que dá direito a
descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais descarados, que se
afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do recém-chegado, impondo-lhe
provações e exigências antes de aceitá-lo como membro da horda. A quantos
ritos, a quantos protocolos, a quantas humilhações não se submete o postulante,
para escapar à perspectiva aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não
ser devolvido, impotente e humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser
aprovado num exame que lhe exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade
de amoldar-se aos caprichos da maioria - a supressão, em suma, da
personalidade.
É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de apaixonado
que tudo fará em troca de um sorriso condescendente. A massa de companheiros de
geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual o adolescente,
emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o ingresso custa caro. O
candidato deve, desde logo, aprender todo um vocabulário de palavras, de
gestos, de olhares, todo um código de senhas e símbolos: a mínima falha expõe
ao ridículo, e a regra do jogo é em geral implícita, devendo ser adivinhada
antes de conhecida, macaqueada antes de adivinhada. O modo de aprendizado é
sempre a imitação - literal, servil e sem questionamentos. O ingresso no mundo
juvenil dispara a toda velocidade o motor de todos os desvarios humanos: o
desejo mimético de que fala René Girard, onde o objeto não atrai por suas
qualidades intrínsecas, mas por ser simultaneamente desejado por um outro, que
Girard denomina o mediador.
Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto
investimento psicológico, termine por levar o jovem à completa exasperação
impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta sobre o
grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de transfigurar
cada impulso de rancor em novo investimento amoroso. Para onde, então, se
voltará o rancor, senão para a direção menos perigosa? A família surge como o
bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no seu rito de
passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que lhe há de
ocorrer será atribuir a culpa de sua situação à fatuidade e ao cinismo dos que
o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações não será atribuída
àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles que o aceitam como
criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas maldades da horda que tudo
lhe exige.
Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais forte
que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama.
Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e o
não-ser: o jovem, em trânsito entre o que já não é e o que não é ainda, é, por
fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas de
quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos são quase sempre a
inversão completa da realidade. Eis o motivo pelo qual a juventude, desde que a
covardia dos adultos lhe deu autoridade para mandar e desmandar, esteve sempre
na vanguarda de todos os erros e perversidade do século: nazismo, fascismo,
comunismo, seitas pseudo-religiosas, consumo de drogas. São sempre os jovens
que estão um passo à frente na direção do pior.
Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um mundo
velho e cansado, que já não tem futuro algum.
(Grupos de amigos jovens, comportamento,
relações de “amizades”)
Complexo
de vira-latas – crônica de Nelson Rodrigues
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso
personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o
pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos,
por toda parte, há quem esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E,
aqui, eu pergunto:
— Não será esta atitude negativa o
disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o
nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos
uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer
brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode
curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos
ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor
tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e
não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse
“arrancou” como poderia dizer: “extraiu” de nós o título como se fosse um
dente.
E hoje, se negamos o escrete de 58, não
tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez
de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma
nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer
esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta
campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas
as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.
Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem,
realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”.
Mas eis a verdade:
— Eu acredito no brasileiro, e pior do
que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro
bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos
húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: —
não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu
contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
A pura, a santa verdade é a seguinte: —
qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em
estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de
invenção. Em suma:
— Temos dons em excesso. E só uma coisa
nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que
eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do
leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico.
Por “complexo de vira-latas” entendo eu
a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do
resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que
nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que
perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe
brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo,
espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores
aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e
perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio
nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
Eu vos digo: — o problema do escrete não
é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema
de fé em si mesmo.
O brasileiro
precisa se convencer de que não é um vira-lata e que tem futebol para dar e
vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr
em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.
(Futebol, derrota no Maracanã, Seleção brasileira)
Felicidade Clandestina – Clarice Lispector
Ela era gorda, baixa, sardenta e de
cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme,
enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois
bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer
criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda:
até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos
entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de
paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas.
Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e
“saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade.
Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia
nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de
começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me
que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um
livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente
acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte
e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na
própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as
ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa,
literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não
me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o
livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.
Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu
recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas
ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte
viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo
mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O
plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia
seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu
voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama
do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não
sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de
seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu
sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se
quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua
casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo
ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra
menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os
meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta
de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela
devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua
casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato
de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha
e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você
nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a
descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que
tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha
desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de
Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a
filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro
por quanto tempo quiser. “Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo
tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a
ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o
livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que
segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto
tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente,
meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler.
Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois
abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela
casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde
guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas
dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade
sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como
demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada.
Às vezes sentava-me na rede,
balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro:
era uma mulher com o seu amante.
(Leituras
na juventude, amizades)
O Primeiro Beijo – Conto de Clarice Lispector
Os dois mais murmuravam que conversavam:
havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o
que vem junto: ciúme.
– Está bem, acredito que sou a sua
primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade:
você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
– Sim, já beijei antes uma mulher.
– Quem era ela? Perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia
como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a
serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa
fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e
sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas
sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia
dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a
turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar,
sentir, puxa vida! Como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar
saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a
lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a
sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo
todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao
sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda
mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um
pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes, mas logo sufocava.
O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede
era de anos.
Não sabia como e por que, mas agora se
sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam
para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos,
espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não
errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de
onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede,
mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e
colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco
desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta
encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os
olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara
dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era
da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole
sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca
na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma
boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua
inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido
vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora
e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto
em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que
fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes
relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha
acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo,
sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o
mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com
sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser,
jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo
também de um orgulho antes jamais sentido: ele…
Ele se tornara homem.
“Felicidade Clandestina” – Ed. Rocco –
Rio de Janeiro, 1998
Defenestração
Luis Fernando Veríssimo
Certas
palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de
alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as
suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra. Hermeneuta
deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles
chegassem, tudo se complicaria.
– Os hermeneutas estão chegando!
– Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. (…)
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
– Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico.
Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
– Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
– Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata. Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela! Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo. (…)
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada. Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
– Querida…
– Mmmm?
– Há uma coisa que preciso lhe dizer…
– Fala, amor!
– Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
– Estou pronta para experimentar tudo com você!
Em outra ocasião, uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
– Fui defenestrado…
Alguém comenta:
– Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela?
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.
– Os hermeneutas estão chegando!
– Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto. (…)
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
– Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico.
Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
– Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
– Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata. Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “defenestration”. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela! Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo. (…)
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada. Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
– Querida…
– Mmmm?
– Há uma coisa que preciso lhe dizer…
– Fala, amor!
– Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
– Estou pronta para experimentar tudo com você!
Em outra ocasião, uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
– Fui defenestrado…
Alguém comenta:
– Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela?
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.
ASA
CURTA
Asa Curta era um passarinho já muito
velho, mas que ainda não sabia voar. Ele tinha aprendido, em seus oito anos de
vida, muita coisa que passarinho nenhum desse mundo
nunca haveria de saber.
Quem já viu passarinho nadar? – e esse
nadava; quem já viu passarinho ler um livro? – e esse lia; quem já viu
passarinho dançar? – e esse dançava tudo que é dança que gente sabe dançar:
samba que nem o brasileiro, tango que nem o argentino, polca como os russos,
valsa como os austríacos, baião e xaxado que nem os nordestinos, rock, tuíste,
iê-iê-iê e essas danças todas que os americanos já inventaram. Até mesmo
algumas que ninguém nunca dançou, que ele mesmo tinha inventado e até batizado:
o saracoteio, o vira-e-mexe, o passo- do - passarinho, a
dança-do-bico-pro-ar...
E havia ainda muita coisa mais que o Asa
Curta fazia, diferente de tudo quanto os outros passarinhos sabiam fazer. Ele
era mesmo um artista, desses de ganhar prêmio em programa de televisão: dava
cambalhota como gente de circo, levantava galho de árvore com uma pata só,
imitava voz de homem e voz de mulher, assoviava comendo alpiste...
Mas de que adiantava fazer tudo isso – e
muito mais, que ele só não fazia porque senão os outros iam pensar que ele era
um passarinho louco – de que adiantava tudo isso, se ele não sabia fazer o que
o mais novo e o mais analfabeto passarinho de qualquer floresta ou de qualquer
cidade era capaz de fazer? De que adiantava ser o passarinho mais famoso que já
houve na terra dos passarinhos, se ele não sabia voar?
– Não adianta nada! – queixava-se o
velho Asa Curta, em conversas com Andorinha Veloz, sua maior amiga e a única
criatura que conhecia esse seu segredo de não saber voar.
– Mas você é o passarinho mais perfeito
que todo o mundo já viu, Asa Curta! Sabe fazer casa como o João de Barro, canta
que nem um Curió. E, depois, é artista de dar inveja a toda a gente.
É, a Andorinha Veloz tinha razão: ele
podia fazer tudo isso, mas não se sentia nem um pouco feliz porque não era
capaz de voar. E por isso ele tinha poucos amigos: como ia ter coragem de dizer
para eles que não sabia voar? Por isso ele nunca tinha pensado em se casar:
depois, como ia fazer para ensinar seus filhotes a voar, e para arranjar comida
pra eles e pra sua mulher? (...)
Mas tristeza mesmo ele tinha era quando
seus amigos chegavam de viagem. Um dia era o Pardal Ambulante, que tinha
visitado a Argentina e corria logo pra contar ao Asa Curta:
– Mas é impressionante, companheiro,
como que o povo lá dança tango igualzinho você sabe dançar.
No outro dia, era o Pica-Pau
Leva-e-Traz, que tinha ido até a Rússia vender pau-brasil e comprar madeira
russa para os pica-paus brasileiros.
– Nossa, Asa Curta, eu vi o pessoal
dançando na rua uns troços do mesmo jeito que você dança aqui.
Era a polca, que Asa Curta tinha
aprendido a dançar lendo uns livros russos. Ele morria – Eu já estou velho, não
aguento mais essas viagens.
Ou, então, era obrigado a dizer uma
mentira qualquer:
– Eu já viajei muito quando era moço,
aprendi muita coisa. Agora prefiro ficar por aqui mesmo.
Mas fazia uma cara tão triste nesses
momentos, que todos percebiam a mentira e que ele estava é com muita vontade de
viajar também. Então, por que motivo não viajava?
Só a Andorinha Veloz sabia, mas não
contava a ninguém; ficava só consolando o amigo. E quando voltava de uma
viagem, não trazia só notícias para o Asa Curta, trazia também presentes,
livros, revistas e fotografias. E assim Asa Curta ficava sabendo mais ainda das
coisas.
Mas isso era pouco: ele já estava
cansado desse conhecimento só de livros, de revistas e de fotografias. Queria
ir também aos lugares, conhecer os passarinhos de lá, conversar com eles, ver
as coisas com seus próprios olhos, sentir o mundo com seu próprio bico.
(MANSUR, Gilberto. Um outro jeito de
voar. Belo Horizonte: Formato, 1989.)
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